Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem
guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma
garrafa de whisky barato apertada contra o peito, parece falso dito desse
jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva.
Uma garrafa de whisky na mão, um maço de cigarros molhados
no bolso. Teve uma hora que eu podia ter tomado um táxi, mas não era muito
longe, e se eu tomasse um táxi não poderia comprar cigarros, nem whisky, e eu
pensei com força então que seria melhor chegar molhada da chuva, porque aí sairíamos
dali e beberíamos o whisky.
Fazia frio, nem tanto frio, mais havia umidade entrando pelo
pano das roupas, pela sola fina esburacada dos sapatos, e beberíamos sem
medidas, haveria música, sempre aquelas vozes roucas, aquele sax gemido e o
olho dele posto em cima de mim, ducha morna distendendo meus músculos.
Mas chovia ainda, meus olhos ardiam de frio, o nariz
começava a escorrer, eu limpava com as costas das mãos, eu enfiava as mãos
avermelhadas no fundo dos bolsos e ia indo, eu ia indo e pulando as poças
d'água com as pernas geladas. Tão geladas as pernas e os braços e a cara que
pensei em abrir a garrafa para beber um gole, mas não queria chegar lá meio
bêbada, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu
andava, todo dia um bom pretexto, e eu não queria que ele pensasse que eu
andava insone, e eu andava, roxas olheiras, teria que ter cuidado com o lábio
inferior ao sorrir, se sorrisse, e quase certamente sim, quando o encontrasse.
E a escova do cabelo tão bem preparada, havia se desmanchado e eu não queria
que ele visse e pensasse que eu andava relaxando, sem me cuidar, e eu andava, e
tudo que eu andava fazendo e sendo, eu não queria que ele visse nem soubesse,
mas depois de pensar isso, me deu um desgosto porque fui percebendo, por dentro
da chuva, que talvez eu não quisesse que ele soubesse que eu era eu, e eu era.
Começou a acontecer uma coisa confusa na minha cabeça, essa
história de não querer que ele soubesse que eu era eu, encharcada naquela chuva
toda que caía, caía, caía e tive vontade de voltar para algum lugar seco e
quente, se houvesse, e não lembrava de nenhum, ou parar para sempre ali mesmo
naquela esquina cinzenta que eu tentava atravessar sem conseguir, os carros me
jogando água e lama ao passar, mas eu não podia, ou podia mas não devia, ou podia
mas não queria ou não sabia mais como se parava ou voltava atrás, eu tinha que
continuar indo ao encontro dele, ou podia mas não queria ou não sabia mais como
se parava ou voltava atrás, eu tinha que continuar indo ao encontro dele, que
fugiria comigo para a sua casa, e que me abriria a porta, o sax gemido ao fundo
e quem sabe uma lareira, pinhões, vinho quente com cravo e canela, essas coisas
do inverno, e mais ainda, eu precisava deter a vontade de voltar atrás ou ficar
parada, pois tem um ponto, eu descobria, em que você perde o comando das
próprias pernas, não é bem assim, descoberta tortuosa que o frio e a chuva não
me deixavam mastigar direito, eu apenas começava a saber que tem um ponto, e eu
dividida querendo ver o depois do ponto e também aquele agradável dele me
esperando quente e pronto.
Um carro passou mais perto e me molhou inteira, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhada, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parada, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhada, não via nosso segredo, via apenas uma menina molhada sem capa nem guarda-chuva, maquiagem borrada, só uma garrafa de whisky barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o whisky todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria. Começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de whisky, como uma bêbada, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta, que ele desistiria da sua viagem.
Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinha e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? Me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu mantida apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? Eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteira, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou Deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: Chegar a aquele aeroporto, e procurando como quem perde um filho, talvez. Olhando por todos os lados, lamentando as despedidas, os aviões que decolavam. E olhava outra vez sem saber se iria o encontrar. Sem me importar se as pessoas achassem que perdi alguém muito importante, desesperada, com lagrimas nos olhos e borrada pela maquiagem, escova desfeita e roupas encharcadas. Eu olhei outra vez e outra vez, direita, esquerda. Foi quando eu o vi entrando naquele avião e partindo.. Água de chuva e lama e whisky batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parada na frente daquele vidro fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar olhando, olhando, olhando, olhando, aquele avião partindo, decolando, que é impossível de parar, olhando, olhando e vendo ele partir...
Um carro passou mais perto e me molhou inteira, sairia um rio das minhas roupas se conseguisse torcê-las, então decidi na minha cabeça que depois de abrir a porta ele diria qualquer coisa tipo mas como você está molhada, sem nenhum espanto, porque ele me esperava, ele me chamava, eu só ia indo porque ele me chamava, eu me atrevia, eu ia além daquele ponto de estar parada, agora pelo caminho de árvores sem folhas e a rua interrompida que eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhada, não via nosso segredo, via apenas uma menina molhada sem capa nem guarda-chuva, maquiagem borrada, só uma garrafa de whisky barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta, chegando muito perto agora, tão perto que uma quentura me subia para o rosto, como se tivesse bebido o whisky todo, trocaria minha roupa molhada por outra mais seca e tomaria lentamente minhas mãos entre as suas, acariciando-as devagar para aquecê-las, espantando o roxo da pele fria. Começava a escurecer, era cedo ainda, mas ia escurecendo cedo, mais cedo que de costume, e nem era inverno, ele arrumaria uma cama larga com muitos cobertores, e foi então que escorreguei e caí e tudo tão de repente, para proteger a garrafa apertei-a mais contra o peito e ela bateu numa pedra, e além da água da chuva e da lama dos carros a minha roupa agora também estava encharcada de whisky, como uma bêbada, fedendo, não beberíamos então, tentei sorrir, com cuidado, o lábio inferior quase imóvel, e pensei na lama que ele limparia terno, porque era a mim que ele chamava, porque era a mim que ele escolhia, porque era para mim e só para mim que ele abriria a sua porta, que ele desistiria da sua viagem.
Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinha e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? Me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu mantida apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? Eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteira, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou Deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: Chegar a aquele aeroporto, e procurando como quem perde um filho, talvez. Olhando por todos os lados, lamentando as despedidas, os aviões que decolavam. E olhava outra vez sem saber se iria o encontrar. Sem me importar se as pessoas achassem que perdi alguém muito importante, desesperada, com lagrimas nos olhos e borrada pela maquiagem, escova desfeita e roupas encharcadas. Eu olhei outra vez e outra vez, direita, esquerda. Foi quando eu o vi entrando naquele avião e partindo.. Água de chuva e lama e whisky batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parada na frente daquele vidro fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar olhando, olhando, olhando, olhando, aquele avião partindo, decolando, que é impossível de parar, olhando, olhando e vendo ele partir...